“A verdadeira imagem do passado perpassa, veloz. O passado só se deixa fixar como imagem que relampeja, irreversivelmente, no momento em que é reconhecido”.
Walter Benjamin
Um acontecimento vivido é finito. Ao passo que o acontecimento lembrado é sem limites, porque é apenas uma chave para tudo o que veio antes e depois. É por meio de um olhar afetivo e vernacular que as histórias de Etel Carmona, David Almeida e Alberto da Veiga Guignard se entrelaçam na Casa Zalszupin, imbuídas pela potência arquitetônica de seu espaço. Por lá destrincham-se as paisagens outrora vividas, vistas e lembrada por eles, por meio de pinturas, esculturas e mobiliários que reconstroem a brasilidade latente do interior do país.
A paisagem que habita as obras expostas nasce antes mesmo da própria imagem ser reconhecida pela mente. Desperta de forma profunda e íntima, até ganhar espaço para brotar fora de nossos corpos, materializando-se diante de nossos olhos. Assim também é a poética desenvolvida pela tríade que ocupa os diferentes ambientes que compõem a construção, localizada no coração do Jardim América, em São Paulo.
A inspiração de Etel Carmona nasce no campo e desenvolve-se por meio dele. A natureza que habita seu mundo interior ganha espaço e interpretações a partir de suas mãos. O ofício é seu guia e meio com o qual constrói aquilo que a rodeia. Artista autodidata nascida no interior de Minas Gerais, Etel encontrou na madeira sua matéria-prima primordial. Em conexão com o universo natural há mais de duas décadas, trabalha em sintonia com o manejo sustentável, atrelada aos ensinamentos provenientes dos povos originários. Nessa íntima convivência com a terra, nascem texturas, formas e encaixes, as quais ela desenvolve e aplica com primor. A iconografia do Brasil profundo perpassa seu trabalho, das floradas de maria-sem-vergonha ao carro de boi, sempre sobreposta às oníricas paisagens, cenas estas captadas com louvor por Guignard e também por David Almeida nas mesmas regiões.
Guignard gostava de dizer que “pintava o que via”, mas, assim como David, toda essa visão transformada em tinta foi sempre filtrada pelas lentes da imaginação – uma instrumentalização do encontro entre o pictórico e a memória. As paisagens que vivem no imaginário de David e que compõem essa conversa começam a se revelar primeiramente ao serem entalhadas em pedaços de jatobá encontrados. Cada trecho percorrido na madeira torna-se um fragmento, que depois é revelado com cores terrosas, as quais se defloram em luz e sombra. Grande parte da série foi realizada no Sul de Minas, mais especificamente em São Bento do Sapucaí, cidade onde Etel construiu seu atual refúgio. Foi perto de lá, em Pindamonhangaba, que Etel passou parte de sua adolescência e onde David se aproximou da pintura de paisagem e encontrou as janelas que o levariam para o desabrochar desse cenário de forma artística. A subjetividade que compõem suas obras nasce desse lugar de memória, da tentativa de eclodir um espaço de pertencimento, de confrontar a pintura por um viés afetivo.
Foi da afetividade também que brotaram as paisagens flutuantes e fantásticas pelas quais Guignard ganhou o mundo e que agora entrelaçam-se nessa narrativa. A figuração é apenas um suporte para a pura emoção estética que está envolta em suas pinturas. Referências de seu campo visual ganham um toque etéreo, nos fazendo duvidar se tais cenas, de fato, poderiam existir. Apesar de considerado parte do segundo modernismo, trilhou um caminho único e pouco atrelado aos movimentos artísticos do Brasil de sua época. Assim também foi Jorge Zalszupin, que, com sua arquitetura sensual e moderna, manteve-se distante de modismos, criando, assim, um estilo único e reconhecível para suas produções, incluindo mobiliários.
Amigo de longa data de Etel Carmona, Zalszupin compartilhava com ela o amor pelo ofício, pela natureza e pela simplicidade. Natural, então, que as peças da amiga e seus processos encontrassem organicamente um espaço certeiro em ambientes da casa na qual por tantas décadas viveu Zalszupin e sua família. É a transmissão de tal legado que transforma vivência em experiência. E é dessa forma que tal experiência se aprimora e fortifica, usando a união desses tentáculos vernaculares de criação.
Ana Carolina Ralston
curadora